domingo, 1 de agosto de 2010

O Sapo Tamancas

O Sapo Tamancas

O sapo Tamancas vivia nos charcos de água perto da antiga estação ferroviária. Era um sapo gordo, de pouca agilidade, muito conhecido e reconhecido pelos outros animais da cidade- tinha um coaxar estridente. Ao pé dele ninguém conseguia pregar olho. Nem mesmo o Pelicas, um cachorro vadio, conhecido pelo seu sono profundo, lograva junto dele um minuto de sossego. Dizia o rouxinol Palino, amigo do oculto, que o coaxar de Tamancas anunciava o fim do mundo. O douto rouxinol assim como o sapo Tamancas era por todos muito respeitado, e por conta dessa premonição ou vidência em casa todos se haviam resguardado. De tal forma que os campos, as paredes, os charcos eram agora paisagens mortas vestidas por um silêncio sepulcral.

“Acho que Palino se enganou. Não vou ficar mais em casa. E mesmo que ele tenha razão que adianta nos refugiarmos? Nada.” Pensou Tamancas, e nesse mesmo instante vestiu o seu sobretudo, era Inverno, e saiu de sua casa. Oh, como ele amava aquele ar fresco da manhã, que saudades ele tinha… “Idiotas. Fomos tão idiotas! Se o mundo acabar nós acabamos, estejamos ou não em casa.”
Saltitou bastante, nessa manhã, nos enormes charcos de água. Há uns bons meses que não o fazia. Lembrou também a sua amiga Penélope, uma coelha elegante cor de monte, muito brava. Era por todos muito respeitada e temida, pois todos lembravam o que ela fizera a Samanta. Samanta era uma gata por demais arrogante e esnob. Num ato de pura vaidade cometera o erro de comparar as suas roupas com as de Penélope, criticando as desta última. Quando a coelha tomou conhecimento desse atrevimento de Samanta, deu-lhe tamanha surra que ela teve de ser hospitalizada. “É claro que eu não tenho um casaco de peles. Não ando por aí em cabarés. Sou moça de família.” Gritara Penélope. O comportamento de Samanta era mesmo um pouco duvidoso. Por mais que uma vez a haviam encontrado em posições um pouco constrangedoras. (Por pudor, recuso mesmo fazer aqui qualquer descrição) Os mais novos cochichavam entre eles a vida e aventuras da gata, as minissaias e os vestidos da desvairada. Não era muito respeitável.

Tamancas lembrou nessa manhã de Penélope. Era perfeitamente normal e natural que dela se lembrasse. O Verão passado havia mesmo pedido a coelha em namoro, mas esta recusou prontamente.
- Quero alguém assim... – Disse ela.
Na verdade acabou por não dizer como. Contudo, Tamancas adivinhava-o. Com certeza referia-se à sua fealdade.
- Se me beijares transformar-me-ei em príncipe.
Era a sua grande esperança e o seu grande argumento. O sapo Tamancas, ingénuo que era, acreditava nessa mesma possibilidade. Tinha um dia visto um filme lá de Hollywood e como ele supusera, “tudo que retrata um filme é realidade.” Desconhecia ele a ficção, a representação de nosso imaginário. Por isso vivia ansioso. Imagine só, uma criatura a todos os títulos feia, descobrir uma, ainda que remota, possibilidade de se fazer bonita. Esse pressuposto de que beijado se tornaria príncipe levou-o a pensar, muitas vezes, em roubar esse mesmo beijo. Penélope, então, era a vítima predilecta.
Tamancas, apesar de poder parecer de alguma arrogância o seu coaxar, era bem-educado, de boa índole. Durante meses assediou a bela Penélope. Assediou, no bom sentido da palavra. Penélope era já adulta. Por isso ele não via nenhum problema em mandar-lhe alguns piropos. Ela parecia até satisfeita quando ele o fazia.
- Ai, pára com isso. Até me deixas sem jeito.
O sapo ria. Por vezes usava como pretexto fazer-lhe cócegas só para dela se aproximar. Pois foi num desses momentos, em que ela se contorcia sob o poder das suas mãos, que ele ousou roubar um beijo da jovem coelha. Ela, claro está, reagiu mal a tal atrevimento e deu-lhe uma estalada. Qual não foi o seu espanto quando ao fazê-lo notou que Tamancas lentamente tomava forma humana. Ao cabo de uma meia hora era um príncipe inglês, notava-se pelo sotaque, de uma elegância e beleza invulgares. As formas do agora Príncipe Tamanks eram tais que Penélope de imediato sentiu-se arrebatada. Sentiu em si nascer o calor, o fogo da paixão.

Como será possível? Assim de um momento para o outro? Que história mal contada, pensareis vós. Não vos censurarei por isso, mas permiti-me ao menos fazer esta afirmação tola: “A paixão à primeira vista é uma realidade.” Nunca aconteceu convosco? Pois bem, também nunca aconteceu comigo, mas aconteceu com Penélope. E quando ela, corpo ardendo de desejo, toda se entregou a Tamanks, foi quase como que levada por um feitiço, um vodoo. Coitada, a pobre não tinha como prever que aquele ato irrefletido teria as consequências que teve.

Uns tempos depois deu à luz cinco seres invulgares, metade coelho, metade homem. Na verdade, só o rosto era humano. O resultado era bastante peculiar e tomava traços de enorme graça. Penélope ficava deveras chateada. Não é com certeza fácil ou do agrado de uma mãe ver os seus filhos serem ridicularizados e humilhados, e com eles, sempre isso acontecia. Os outros animais da cidade, apesar do respeito que por ela tinham, não deixavam de rir à sua passagem. Outra coisa que a fazia sofrer bastante era que o agora Príncipe Tamanks, homem frio e cruel, negava a paternidade de seus filhotes e insinuara até que ela não passava de uma rameira. Magoada, assim se sentia. Desejava tanto que Tamanks voltasse a ser o sapo Tamancas! Como ela o desejava! “Talvez que eu dando-lhe um beijo, ele volte à sua forma inicial.” Assim pensava. Planejou pois tomar de assalto o castelo de Tamanks mais os outros animais. Estavam todos revoltados com o Príncipe. Este, numa atitude bárbara, erigira seu magnificente castelo exatamente sobre as suas casas.

Uma noite, reuniram-se todos no parque e caminharam na direção do castelo de Tamanks. Uma vez lá, fizeram Penélope entrar por uma janela. Procurou o quarto do Príncipe e ao vê-lo dormir sentiu ser a sua oportunidade e correu para o beijar. Mal se chegou a ele, este acordou, e num acesso de fúria desembainhou a espada de pronto e correu atrás dela. Penélope fugiu assustada e só com muita sorte conseguiu escapar. Cá fora, ofegante, avisou os outros de que deviam retirar-se e assim foram todos para casa.

No dia seguinte, e em muitos outros dias seguintes, voltaram a reunir-se e planejaram uma e outra vez a mutação de Tamanks, contudo, nada do que planejavam dava certo e acabaram por desistir. «Água mole em pedra dura tanto bate até que fura». Será assim mesmo?

Dez meses e doze dias depois de se ter tornado homem, logo pela manhã quando acordou, o sapo Tamancas voltara a ser sapo. Fora como se acordara de um sono profundo, como se dormira todo esse tempo. Quando acordou olhou à sua volta e ficou deveras surpreso com o lugar onde se encontrava. Em cima de uma cama? Mas ele nunca havia sequer estado perto de uma cama. E como havia ido parar ali? Não fazia a menor ideia.
Saiu do castelo apressado, não fosse estar em território hostil, e arrepiou caminho. “O mato? Onde está o mato? E os charcos? Que fizeram com os meus charcos de água?”; Pensou. “ Não é possível! Aquele castelo… Sim, aquele castelo… É lá que ficavam os meus charcos de água.”; Deu conta. Ficou furioso, mesmo muito furioso. Ele amava aqueles terrenos e pensava para consigo mesmo quem teria cometido aquela maldade. “ Pois há almas muito más, muito más mesmo. Pessoas que deviam arder no inferno.”; Resmungou.
Cansado parou à sombra de uma roseira. Uma das rosas, mais descarada e atrevida, espetou-lhe um espinho.
- Toma, que é para aprenderes!
Tamancas estranhou aquela atitude.
- Que foi que eu fiz? - Perguntou.
- Que descaramento! Depois de tudo que fez ainda pergunta. Pois é muito descaramento mesmo.
- Vai embora daqui. Não és benvindo. - Disse outra.
- Sim, vai embora. - Gritaram todas elas.
- Mas eu não sei mesmo o que fiz. – Insistiu Tamancas.
- Por acaso não és o Príncipe-Sapo?
- Como?! Príncipe-Sapo?!
- É ele, sim. – Começaram elas a discutir.
Tamancas, não sabendo o que pensar, ao ver o que sucedia, achou, no entanto, por bem seguir caminho. Não queria ser vítima do ataque de um roseiral. Aqueles espinhos bem doíam.
Caminhou algum tempo, até se sentir fatigado, e foi descansar debaixo de uma enorme Oliveira.
- Não devias estar aqui. – Disse ela.
- Mamã, mamã… Não acredito que vais deixá-lo ficar aqui. – Gritaram as filhas azeitonas.
- Devemos ouvi-lo primeiro. Sempre vos disse para não fazeres julgamentos precipitados.
- Não percebo. O que é que aconteceu? – Perguntou o sapo.
- O que aconteceu pergunto eu.
- Estão todos, parece-me, revoltados ou zangados comigo e eu não entendo porquê.
- Tu despejaste-os.
- Eu?!
- Sim, tu, o Príncipe Tamanks.
Tamancas estava cada vez mais perdido nos seus raciocínios e pediu à oliveira que o ajudasse, que lhe contasse tintim por tintim o que acontecera, mas esta recusou. Ordenou até a algumas das suas filhas que o atacassem; o que elas fizeram prontamente, e Tamancas teve de fugir.
Correu muito, passeou e passeou bastante, por entre numerosos campos de cultivo até encontrar Penélope. Quando a viu soltou um alegre “olá” a que ela respondeu com desprezo.
- Olá! – Insistiu Tamancas.
Contudo, a coelha não fazia caso. Continuava estatelada na grama.
- Não falas comigo? – Questionou Tamancas.
Nesse momento Penélope levantou-se e correu campo fora. Passado algum tempo voltou mais Palino, Reglés, o veado, Pitarroxa, a pata, e todos os outros animais da cidade. Apressados caminhavam na direcção do sapo, que pelo sim, pelo não, atordoado com o que se passava à sua volta, achou por bem pôr-se em fuga.
Tamancas nunca mais voltou àquela cidade, àquela terra que ele tanto amava. Hoje, ainda sem saber bem o que aconteceu, e passados vinte anos, Tamancas, o sapo, é só um sapo; um sapo clandestino, um sapo que vive à margem da sociedade. Não casou, não teve filhos… É só um sapo sozinho. Mas fora Príncipe, um dia.

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