domingo, 26 de junho de 2011

Hand Dance: Suzanne Cleary e Peter Harding


quinta-feira, 23 de junho de 2011

Conto: M. de Ricardo Barbosa

M. tinha seis anos, diziam alguns, e andava na quarta série. Diziam alguns, escrevi, porque não havia entre todos concordância, não só quanto à sua idade, mas também em relação a outros tantos assuntos. Por isso, e no que toca à idade, M. para uns tinha seis anos e andava na quarta série, o que significava que seria uma criança especial, para outros tinha nove anos e andava na primeira série, o que implicaria que ele fosse tudo menos um gênio, e para outros ainda tinha dez anos e andava na quinta série. Normal, portanto, seria essa criança. Normal não fossem os "buracos negros", vou chamar assim, da sua história.
De M. nada se sabia e ao mesmo tempo sabia-se tanto. Havia na aldeia tantas caracterizações desse menino que cheguei a pensar tratar-se de vários rapazes. Para terem uma ideia, tudo em si era tão díspar, que havia uns que diziam que era alto e magro, outros gordo e baixo, outros baixo e magro, outros alto e gordo.
M. era quase que uma lenda. Na aldeia todas as pessoas falavam dele e sabiam quem ele era. Quer dizer, sabiam? Para uns era o filho do padeiro, o senhor Jeremias, muito respeitado, para outros era filho da viúva Clemência, olhada pelo povo como responsável da morte do marido, e para outros ainda era filho do sapateiro, o senhor Raul.

Uma quarta-feira de Agosto M. saiu para caçar. Uma quinta-feira de Julho, melhor dizendo, ou uma terça-feira de Maio. O dia ao certo não sei. Uns dizem que foi em Maio, outros em Julho, outros em Agosto. Também não pude apurar com certeza se ele realmente saiu para caçar, pois outros havia que afirmavam que saíra para pescar ou pura e simplesmente para passear.
Entrou no bosque, no mato ou na floresta como eles discutiam e num repente fora atacado, embora haja quem afirme que nessa história M. não pode ter outro papel senão o de predador. Atacado ou não, M. regressou só dois meses depois, duas semanas ou dois dias, trazendo em ombros uma enorme raposa ou uma rede de peixe. Para alguns, os que afirmam que ele foi passear, regressou de mãos a abanar.
Quando regressou (e neste ponto estamos todos de acordo, embora o filho do moleiro, rapaz esperto, afirme que ele nunca saiu da aldeia), vinha um outro homem ou um outro rapaz. Depende da idade que julgarmos que ele tinha.
Como eu dizia, quando ele regressou, uns falavam que vinha mais calmo, outros que parecia mais agressivo e outros que era exatamente o mesmo. Cúmulo dos cúmulos, os que antes diziam que era alto e gordo diziam agora que era baixo e magro, e para aqueles que o pintavam antes sereno era agora bravio e impaciente, mais feroz que leão faminto.
Passaram alguns anos, alguns meses ou algumas semanas e impunha-se que M. se casasse como todos os rapazes da sua aldeia. Era ponto assente entre todos que, embora M. fosse um indivíduo peculiar, haveria ainda assim de seguir a tradição da terra e casar e ter filhos. Quando digo todos, esqueço-me dos mais velhos que defendiam que a tradição da terra não era casar, mas sim seguir para a guerra, e dos mais jovens, avessos a essas coisas de tradições e culturas, que defendiam que M. devia fazer o que bem entendesse da sua vida.
Assim sendo, uns tempos mais tarde M. casou, foi para a guerra ou não fez nem uma coisa nem outra. Afirmam os que defendem a tese de que foi para a guerra, que M., nobre guerreiro, morreu em combate. Dizem mesmo terem ido ao seu velório. Contudo, há aqueles que afirmam que ele casou e não pegou nunca numa arma. Aliás, para esses, ele vive ainda junto ao rio, numa pequena cabana, mais a mulher e os filhos. Uns dizem que são quatro crianças, outros seis, outros sete. Dizem uns que são meninas, dizem outros que são meninos na sua maioria.

Em 1981, quando me propuseram fazer uma biografia de M., estava longe de imaginar que tão árduo se viria a revelar esse trabalho. Tornou-se, sobretudo, quase impossível fazer a distinção entre o real e o imaginário. M. era conhecido de todas as povoações por onde passava. Para uns era um fiel amigo, para outros um grande inimigo. Acima de tudo, M. era como que o contrário de si mesmo, e cada vez que o julgava conhecer, no momento imediatamente a seguir via-me surpreendido.

- Ele era um indivíduo alto, assim forte. Tinha um coração tremendo. Bom coração aquele homem tinha. - Afirmou a costureira.
- Ele era um homem de posses ou era pobre?- Perguntei.
- Oh, ele era riquíssimo! Usava pulseiras e fios de ouro. Ah, e anéis! Anéis grossos, vistosos.
- Não, não, não. M. era pobre, homem. E não usava nada de pulseiras e fios, muito menos ouro. Era o irmão, o Felício, que o sustentava. M. era um homem boêmio, de muitos vícios. - Afirmou José, o merceeiro.
- Não, senhor. - Gritou Amália, a ajudante da costureira. - Ele era um homem puro, livre das impurezas do mundo. Vícios?! Nem pensar.
- Ele era crente?- Questionei.
- Deixem-me rir. - Desabafou Alberto, o ferreiro. - Um homem como ele, crente? Crente em quê? Não saía de casas mal freqüentadas. Imagino as suas orações.
- Não blasfeme, rapaz. - Disse Eugênia, a catequista. - M. era um bom homem, sim. Era sacristão até. Temente a deus, trabalhador, honesto... Bom pai de família.

Outra vez falei com os supostos professores de M.. Supostos, sim. Não posso afirmar com rigor que o tenham realmente sido.


- Ele era um menino esperto. - Afirmava o suposto professor da segunda série de M.. - Não havia um trabalho de casa que ele não fizesse. Era aplicado, inteligente, educado; um sonho de aluno.


- Foi dos alunos que menos gostei. Era mal educado, arrogante... Depois não fazia coisa nenhuma. Nem em casa nem na escola. - Dizia o suposto professor da quarta série.


"Se ele é temente a Deus ou não eu vou descobrir. Agora se era bom ou mau aluno ficou meio difícil.", pensei. As escolas da região não tinham um registro de notas, para além de que seria preciso saber a sua verdadeira identidade. Eu não sabia. Aliás, ninguém sabia.
Fui então a várias igrejas e falei com outros tantos padres. Pelo menos quatro dos que falei afirmavam tê-lo casado, e uma meia dúzia deles, os mais velhos, diziam tê-lo batizado, contudo, uma dezena e meia afirmavam nunca tê-lo sequer visto na casa do Senhor. Conheciam-no só de ouvirem falar nele e tinham quase tanta vontade de conhecê-lo como eu.


Cansado. Estava já cansado de tanta contradição, de tanta história mal contada e por confirmar, quando uma senhora, aí com os seus setenta anos, bateu na minha porta.


- Boa tarde. - Disse ela. - O senhor é o senhor Armando?
- Sou sim. - Respondi.
- Eu soube que procura informações de M., que está a escrever a sua biografia.
- É verdade, sim, mas... Confesso não estar a ser nada fácil. Estou mesmo a pensar desistir. - Disse eu.
- Não acho que deva desistir.
- Quem é a senhora? - Perguntei curioso.
- Prazer. Sou Emília Moravia, ex-noiva de M..


Nesse instante o meu coração animou-se. "Noiva de M.?", pensei. "Já me apareceram padres que dizem tê-lo batizado e casado, professores que dizem tê-lo instruído, catequistas, pedreiros, ferreiros, padeiros, moleiros, toda a espécie de gente a dizer tê-lo conhecido, mas uma noiva... Uma noiva nunca me apareceu. Será mesmo?" Avancei reticente. Já não sabia em quem ou no que acreditar.


- Ex-noiva de M.?
- Sim. Também o procuro tal como o senhor. - Respondeu.
- Eu não o procuro propriamente dito. Procuro saber a verdade sobre ele, só isso. Já agora, a senhora procura-o porquê? Se é que posso saber.
- Procuro o meu noivo. É legítimo que o procure.


Fiquei impressionado com a firmeza e com o amor que aquela mulher parecia ter por ele. Resolvi por isso dar uma oportunidade, não só a ela, mas também a mim mesmo. Estava já decidido que havia de desistir dessa biografia. Contudo, não queria perder a oportunidade de entrevistar a única mulher que me dissera ser sua noiva. Queria saber da boca da mulher que o amara outrora quem M. realmente era.


- Ele era bonito, elegante... Mesmo muito bem parecido e bem falante. Era um verdadeiro sedutor. Para além de falar bem, coisas bonitas, também sabia vestir. Era o moço mais cobiçado, posso dizer, pelas moças do meu tempo. Era instruído. Sabia falar de qualquer assunto. Inteligente, astuto, perspicaz... Era um homem como deve de ser.


"Obviamente esta mulher ainda o ama.", pensei. "Contudo, vou acreditar nela, e para mim M. será como ela falar. Ninguém tão bem como quem nos ama nos conhece. Ninguém tão bem como quem nos ama nos exagera. Sob o efeito do amor, de uma cristalização poderosa, todos parecemos perfeitos aos olhos de quem nos gosta."
E eu decidira para mim naquele momento, que tendo já ouvido versões tão diversas, M. não podia ser senão especial, senão como aquela mulher o dizia. Bonito, elegante, inteligente, instruído... Assim era M..


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